Há uma mudança de tom entre o fim de 1 Reis 10 e o começo de 1 Reis 11. Numa leitura contínua, no entanto, de imediato a transição é quase imperceptível. 1 Reis 11:1 começa com o “e” hebraico, que sugere simplesmente sequência, continuação. “E o rei Salomão amou mulheres estrangeiras, muitas”.
Mulheres “estrangeiras”, dos goiím, dos “povos” (essa palavra, com o tempo, veio a significar “pagãos” em hebraico). São “os povos acerca dos quais o Senhor tinha dito aos filhos de Israel: Não entrem a eles, e nem eles a vocês” (11.2). Ou seja, o rei é o primeiro a desobedecer uma das ordens mais taxativas dadas por Deus aos israelitas. A razão de tal ordem é: “é certo que eles vão desviar o coração de vocês para seguir os seus deuses”. O projeto divino com os israelitas tem um ponto central, um eixo ao redor do qual tudo o mais gira: o reconhecimento de que Deus é Um. Pensar em uma diversidade de deuses é transferir para a esfera do divino o pecado que ameaça a criação toda. O pecado separa, rompe, fragmenta. Assim se encontra a criação. Assim se encontra a humanidade. E é para dentro dessa realidade fragmentada que Deus se revela, e é nela que Seu projeto de reconciliação está em andamento. Transferir o pecado, a fragmentação, para a própria esfera do divino seria pôr tudo a perder no núcleo, no ponto central.
“Mulheres princesas, ele tinha setecentas. Concubinas, trezentas” (v.3), de todas as procedências (v.1). “A elas se prendeu Salomão pelo amor” (v.2). “E assim, quando Salomão envelheceu, suas mulheres tinham desviado o seu coração atrás de outros deuses. Seu coração não permaneceu íntegro para com o Senhor, seu Deus” (v.4). Segue uma lista de deuses que Salomão seguia (v.5). Salomão, o construtor, agora construía santuários para outros deuses (v.7), os deuses de suas mulheres estrangeiras. E não só: participava ele próprio no seu culto (v.8).
O relato sintetiza tudo isso numa frase: “Salomão fez o mal aos olhos do Senhor” (v.5). Essa frase será, daqui por diante, uma espécie de refrão no relato bíblico de todo o período dos reis israelitas. Sempre de novo a ouviremos. Geração após geração.
Nesse momento da narrativa precisamos parar e pensar. Sentimo-nos ainda meio atordoados com a mudança tão drástica entre o relato dos primeiros tempos do reinado de Salomão e o relato de como ele terminou. Compreender o que se passou, será chave para podermos compreender o restante da narrativa bíblica (até o Apocalipse).
Dia 299 – Ano 1