“E o Senhor levantou contra Salomão um adversário” (1 Reis 11.14), assim começa a parte final da história de Salomão. Adversário é satán, um “satã”, termo que com o tempo vai se inflar até se referir finalmente ao Satã, o adversário maior da humanidade e do povo de Deus. Todavia, já se abre aqui uma dupla perspectiva, ou tripla, a iluminar os acontecimentos históricos. Há a superfície do relato, os “acontecimentos”. Há os bastidores do relato, os jogos econômicos e políticos maiores nos quais o relato se encaixa. E nas profundezas do relato se esconde ainda um conjunto de elementos e ações que transcendem os limites de ambos, e que nos remete a uma “batalha espiritual” que, num horizonte maior, tem a ver com o destino da humanidade e da criação divina como um todo.
O primeiro adversário aqui mencionado é Hadade, edomita. A história de Hadade é contada para mostrar a razão de sua oposição a Salomão. Numa das guerras de conquista de Davi, pai de Salomão, todos os homens de Edom haviam sido exterminados (11.15-16). Mas um povo não se deixa exterminar facilmente. Um esquema de segurança foi posto em ação, e um menino da família real escapa e é levado ao Egito (11.17-18). Lá o faraó, rei do Egito, o recebe e o adota. Na narrativa, o faraó parece ser o mesmo que tinha aliança com Salomão, pela qual lhe deu sua filha em casamento. Mas os acordos em política são sempre acordos políticos. O faraó dá abrigo ao oponente de Salomão e o cria dentro da família real, na qual com o tempo Hadade veio inclusive a se tornar importante (11.19-20). Esse tipo de planejamento político de longo prazo é característico no jogo político da época. Não é primeiramente por bondade que o faraó recebe e protege Hadade. É por ver nele um importante trunfo para os seus próprios projetos políticos no futuro. Seja como for, chega o dia em que chega a notícia de que os que ameaçavam Hadade diretamente estavam mortos, e ele decide voltar à sua terra e realizar seu destino (11.21-22). E com isso o importante para a narrativa está dito.
“E Deus levantou contra ele um adversário” (1 Reis 11.23). “Ele” aqui é Salomão, o fato de o texto não nomeá-lo indica que tudo que está contando ainda faz parte da história de Salomão, a história de como um rei com tremendas potencialidades acabou se desviando dos caminhos de Deus. O satán agora é Rezom, um servo fugitivo do reino de Zobá que foi juntando homens e acabou se tornando “chefe de bando”. A referência a Davi em 11.24 não é casual. Rezom, em certos aspectos, se parece com o Davi “chefe de bando” que conhecemos na narrativa de 1 Samuel. Rezom se estabelece em Damasco, na Síria, e ali se torna importante nos negócios regionais, tal como Davi tinha sido recebido e protegido pelo rei dos filisteus em seu tempo, quando fugia de Saul, rei de Israel. De lá, Rezom “foi um satán para Israel” (11.25). Assim, adversários foram se fortalecendo ao redor do reino de Salomão: Hadade ao sul, Rezom ao norte. O texto termina falando de como esses adversários “detestavam” Israel. Sem esconder que, de uma perspectiva humana eles não deixavam de ter suas razões.
Dia 302 – Ano 1