A história contada em 1 Reis 18.20-46 é paradigmática, num aspecto importante da narrativa bíblica. O que temos aí é um embate entre duas religiões, ou dois jeitos de conceber a relação com a religião. De um lado, temos o rei Acabe, que representa e segue caminhos instituídos, segundo a narrativa, pelo rei Jeroboão antes dele. E que são tão avessos ao texto bíblico que o levam a ver Jeroboão como modelo de mau governante em Israel.
Acabe segue, em certos aspectos, políticas introduzidas por Salomão no tempo em que o reino ainda era unido. A esposa de Acabe, Jezabel, parece ter tido grande influência sobre ele e sobre o reino. Quando a apresenta, o texto bíblico diz: “Como se fosse pouco andar ele [Acabe] nos pecados de Jeroboão, … tomou por esposa Jezabel, filha de Etbaal, rei dos sidônios; e foi e serviu a Baal, e o adorou. Fez um altar a Baal no templo de Baal, que mandara construir em Samaria” (1 Reis 16.31-32).
Baal era uma divindade da terra, da natureza. Pensava-se que ele controlava os processos que tinham a ver com a natureza. Chuva e sol, clima, plantações, colheitas, fertilidade do solo. Como tudo isso é inerente à existência do ser humano, pode-se compreender que haja uma natural afinidade com uma religião desse tipo. Numa sociedade agrária, os processos sociais, econômicos e políticos estão profundamente imbricados com os processos da natureza. Dá para compreender.
A narrativa bíblica é que vem introduzir uma certa “novidade” nesse tema. A novidade não estaria nos atores, que são os mesmos. A natureza é a mesma. Que processos sócio-econômicos tenham ligação com ela, também. A “novidade” da narrativa bíblica é a relação disso tudo com Deus, com o Criador do céu e da terra. Que as pessoas desvinculem a criação de seu Criador, e com isso a desvinculem dos vínculos de amor, justiça e paz que a sustentam, esse é o grande problema. Um mundo assim desvinculado pode ser redesenhado e manipulado em função de poderes e interesses que pouco têm a ver com amor, justiça e paz. E, consequentemente, com o equilíbrio profundo do ecossistema.
No texto bíblico, a natureza protesta contra isso fazendo com que não chova. É significativo o jeito com que o texto fala disso. Num lugar, o fator determinante parece ser a palavra do profeta (“segundo a minha palavra”, 1 Reis 17.1). Noutro, é Deus (“trarei chuva sobre a terra”, 1 Reis 18.1). Ainda noutro, é a própria ação da natureza (uma pequena nuvem que traz chuva; 1 Reis 18.41-45). Como explicar isso?
A pergunta teria que ser, por que é que para nós as coisas têm que ser assim: ou a causa é esta, ou é aquela. Nosso jeito de pensar se acostumou com a presença pervasiva do pecado no mundo. Naturalizamos o pecado, por assim dizer. No coração de Deus, o mundo é uma grande unidade. Mas nós separamos aquilo que em Deus está junto. O pecado separa, fragmenta, quebra a unidade das coisas. E depois leva a ver o mundo assim dividido como sendo o normal. Os textos bíblicos nos vão mostrando essa realidade do pecado e o que tudo ela causa.
Dia 319 – Ano 1