Eliseu, o sucessor de Elias, começa agora sua carreira solo. Os “discípulos dos profetas”, uma espécie de comunidade de profetas reconhece que “o espírito de Elias repousa sobre Eliseu” (2 Reis 2.15) e o homenageiam. Como Elias às vezes era levado pelo Espírito a outros lugares, aconselham que se faça uma busca para ver se Elias realmente foi levado embora. Eliseu cede, mas a contragosto, talvez revelando uma característica de personalidade que poderia vir a se tornar um problema.
Os moradores de Jericó, que ficava na planície do Jordão, se queixam a Eliseu que as águas lá são salobras e deixam a terra improdutiva. O profeta, aplicando uma receita do tipo “veneno que mata, veneno que cura”, joga sal nas vertentes e anuncia uma palavra de cura divina. “E as águas foram curadas até o dia de hoje”, diz o texto, “conforme a palavra que Eliseu havia dito” (2.22).
De lá Eliseu subiu a Betel, na região montanhosa. No caminho, acontece uma tragédia que nos deixa perplexos. Perto de um vilarejo, meninos saem correndo atrás do profeta e riem dele: “Sobe, careca! Sobe, careca!” (2.23). Eliseu se volta e os vê, “e os amaldiçoou em nome do Senhor” (2.24). Logo saem dois ursos de um matagal próximo e os atacam, matando 42 deles. “Meninos”, diz o texto, como que indignado. Antes os havia descrito como “crianças pequenas”. Que dizer disso?
São passagens bíblicas que nos deixam perplexos, como o próprio narrador parece estar. Justificar o procedimento do profeta, seria a última coisa que poderia nos passar pela mente. O próprio texto não o faz. Um profeta, o sucessor de Elias, que recém havia passado por uma experiência de “céu aberto”, que recém havia trazido bênção à população de uma cidade ao purificar sua água. Num momento de cólera, usa do poder espiritual que lhe veio com o espírito de Elias para rogar praga sobre crianças que aparentemente só estavam sendo crianças. Querer botar culpa nessas crianças, por “zombar de um profeta”, parece quase macabro.
Sem pretender explicar o inexplicável, talvez a atitude de Eliseu no episódio narrado em 2.16-18 pudesse ajudar a perceber rumos para a interpretação desse funesto episódio. Eliseu se indispõe com os profetas, e parece ter havido uma discussão acalorada. “Mas eles insistiram com ele, até que a coisa ficou constrangedora” (2.17, literalmente). Eliseu finalmente concorda, e quando as buscas por Elias dão em nada ele encerra o caso com uma fala do tipo “Viram, eu falei…” (2.18).
Mas talvez isso já seja uma tentativa de explicar o inexplicável, num viés psicológico. De qualquer modo, Eliseu estava diante de um grande desafio pessoal: coadunar o poder espiritual que agora tinha, com o temperamento e as disposições interiores que sua biografia lhe legava. Talvez seja por isso que histórias assim nos sejam contadas nos textos bíblicos.
Dia 337 – Ano 1