O filho prometido ao casal que hospedava Eliseu já está crescido (2 Reis 4.18). Certo dia, estando ele na lavoura com seu pai, sente fortes dores na cabeça. Levado para casa, morre no colo da mãe. Ela o coloca na cama onde dormia Eliseu quando com eles se hospedava, e sai depressa “e foi ter com o homem de Deus, no Monte Carmelo” (4.25). Vendo-a ao longe, Eliseu manda Geazi, seu assistente, ao encontro dela. Chegando lá, ela se atira aos pés do homem de Deus, e Geazi tenta apartá-la. O homem de Deus representa e encarna o sagrado e seu poder, por isso não se deve tocá-lo. Mas Eliseu responde: “Deixa estar. Sua alma está amargurada. E o Senhor encobriu isso de mim, e não me falou nada…” (4.27).
Aqui se abre uma janela para a relação entre profeta e Deus. Como vimos, com Elias surge em Israel um novo tipo de profeta, com “assento permanente” na corte celeste. Eliseu, herdeiro espiritual de Elias, parece continuar essa tradição. O fato de algo lhe ficar “encoberto” parece entristecer o profeta. Deus não lhe havia dito nada sobre isso. Amós 3.7 parece estar se referindo a algo assim: “Pois Adonai, o Senhor, não faz nada sem revelar Seu conselho a Seus servos, os profetas”. Mas infelizmente a profecia está sujeita a ser cooptada por interesses outros. Em tempos de crise, até hoje, auto-proclamados profetas tendem a usar isso para legitimar sua autoridade e seus interesses em benefício próprio. E apelando para textos bíblicos como este, conseguem se impor sobre multidões que buscam na fé uma segurança e auto-estima que sentem a vida e a sociedade lhes negar.
De volta à casa de Eliseu, o profeta rapidamente toma providências face ao desconsolo da mulher. Dá o seu bordão ao seu assistente e o manda correr na frente e colocá-lo sobre o menino morto. Considera-se que o bordão do profeta, tal como a “vara” de Moisés e de Arão, tenha poderes mágicos. Mas sem o profeta o bordão se mostra inócuo (4.31). Finalmente Eliseu chega, fecha a porta e ora ao Senhor (4.33). Depois deita sobre o menino, alinhando com ele a boca, os olhos e as mãos. “E a carne do menino foi se aquecendo”, diz o texto na linguagem do seu entorno cultural. Eliseu se levanta, caminha um pouco e repete o processo. Então o menino “espirrou sete vezes e abriu os olhos” (4.34-35). E o profeta o devolve à sua mãe, restabelecido.
Hoje temos certa dificuldade em compreender o que aí se está descrevendo. O texto parece entender que Eliseu comunica vida à criança, vida que passa pelo seu corpo e dele para ela. Talvez já o próprio Eliseu “canalize” nesse momento as energias espirituais de Elias, que passaram para ele quando Elias foi arrebatado aos céus vivo. Que textos como este gerem sempre de novo pretensões e ambições em pessoas que tentam lucrar com a fé de outras, mais uma vez há que admitir. A própria Bíblia já dá vários exemplos. Mas não deveríamos deixar que falsificações nos impeçam de apreciar e reverenciar momentos como esse, em que barreiras de transcendência são superadas e a vida se manifesta em sentido mais pleno do que o que estamos habituados.
Dia 340 – Ano 1