Depois dos relatos de visões dos capítulos anteriores, Isaías 36 assume o estilo da narrativa histórica, com localização e identificações precisas. “No décimo quarto ano do reinado de Ezequias”, o exército assírio invade Judá e chega às portas de Jerusalém (Isaías 36.1-2). É a situação descrita em Isaías 10.28-34, e que vem sendo pintada desde o começo do Livro de Isaías (1.7-9). De um certa perspectiva, poderíamos até entender tudo que foi falado no meio como sendo visões e reflexões do povo de Deus diante da ameaça de sua extinção.
O rei assírio envia um comandante militar como porta-voz ao rei de Jerusalém, acompanhado por um grande exército (36.2). O rei Ezequias manda uma delegação falar com eles (36.3). E aí o texto dá a palavra ao comandante militar assírio, que faz um longo discurso (36.4-10). Os enviados de Ezequias vão tentar a diplomacia (36.11), mas os assírios se sentem empoderados o suficiente para deixar de lado as convenções. Querem provocar, causar medo, criar pânico. E o porta-voz continuará o discurso, agora falando mais alto ainda, para que todo o povo possa ouvir (36.13-20).
O rei da Assíria, cujo discurso é transmitido aqui pelo seu porta-voz, demonstra astúcia. Não confronta diretamente o Deus de Israel, isso provavelmente só enfureceria mais os seus adversários. Mas pelas beiradas ele vai mostrando “quem manda aqui”. Repreende Ezequias porque “te rebelaste contra mim” (36.5). E passa a convencê-lo de que se meteu numa encrenca, da qual não tem como sair vencedor. “Em quem estás colocando tua confiança?”. No Egito, esse “frágil caniço”, que fura a mão de quem se apoia nele (36.6)? E vai destratando os egípcios diante dos que estariam confiando neles para sair da encrenca. Eles certamente sabiam do pacto que uma parte da elite de Jerusalém fez ou havia tentado fazer com os egípcios, e que havia sido condenado pelo profeta (Isaías 31). Redes de espionagem não são um fenômeno moderno.
Se textos como esse estão na Bíblia, talvez seja para nos mostrar coisas que transcendem o contexto histórico imediato, e podem ser atuais também em outros tempos e lugares. Ao longo da história da humanidade, o que aqui é apresentado como a política externa assíria, vai se encarnando sempre de novo em projetos imperialistas que repetem numa quase monotonia as suas características. E mesmo porta-vozes arrogantes e esbravejantes não são novidade. O porta-voz assírio começa mandando, e manda o tempo inteiro. Para ele, pelo jeito, é assim que as coisas são, e é assim que devem ser. “Vão dizer a Ezequias” (36.4), é assim que ele trata o rei de Judá. O texto, com certa ironia, faz o comandante falar como falam os profetas, porta-vozes de Deus (“Assim diz…”). Só que a palavra que o porta-voz transmite é a do rei da Assíria.
Dia 68 – Ano 2