O rei Ezequias se vê frente à morte. A sensação é de que “a minha geração segue adiante e é removida da minha presença, como a tenda de um pastor” (Isaías 38.12). A geração da qual se faz parte levanta acampamento e prossegue sua vida, nos deixando para trás. “Não mais verei o Senhor, o Senhor, na terra dos vivos. Não mais colocarei meus olhos em um humano, nos moradores deste mundo finito!” (38.11). O Deus de Israel é o Deus de toda a terra. Mas na percepção de Ezequias naquele momento, isso significava “a terra dos vivos”. Poder ver um ser humano, coisa que logo lhe será vedada, de repente virou para ele algo maravilhoso. Poder ver um morador deste mundo finito!
Metáforas vão se acumulando para tentar expressar o sentimento que toma conta. “Enrolei a minha vida como um tecelão quando corta o fio de sua trama”. E aí o grito de inconformidade: “Do dia para a noite me jogaste fora!” (38.12). “Do dia para a noite me jogaste fora!” (38.13). “Me deixa sonhar de novo, me deixa viver!” (38.16).
Entre o final de 38.16 e o começo de 38.17 temos, então, a experiência de cura prometida em 38.5 e sinalizada em 38.21-22. O tom muda radicalmente. “Vejam! Para paz e saúde foi que passei por tanta amargura” (38.17). “Tu, Tu amaste a minha alma salvando-a da cova destruidora, pois lançaste atrás das Tuas costas todo o meu pecado”. Deus o livrou da morte. Pois “os que descem à cova” não têm esperanças (38.18). Só “os vivos, os vivos” (38.19).
A continuação da história de Ezequias, em 2 Reis 20.12-21, lança uma sombra sobre todo esse episódio, e quando o texto bíblico o faz é porque quer que pensemos nisso. “O pai dará a conhecer aos filhos a Tua verdade”, promete Ezequias em sua euforia (Isaías 38.19). Nos 15 anos extras de sua vida ele teve um filho que se tornou seu herdeiro, Manassés (que tinha 12 anos quando começou a reinar). Manassés não só reverteu todo o bem que Ezequias havia feito em seu reinado, mas acrescentou ainda muitos outros males (2 Reis 21.1-18). Foi o começo do fim do reino de Judá.
Em sua angústia, muito compreensível, talvez Ezequias tenha se apegado excessivamente à “vida”. Quanto mais ia se sentindo longe dela, mais ele se fixava obsessivamente nela, parece. E mais as suas percepções iam se agarrando à crença de que só os vivos “vivem”. A atitude toda, por compreensível que seja, parece sumamente egocêntrica. E os seus súditos que não tiveram a mesma sorte? Deus não os perdoa, não os ama? Em tempos em que se busca desesperadamente formas de estender artificialmente a vida, um texto como esse nos convida a uma reflexão sobre o sentido da vida.
Dia 74 – Ano 2