Quando Deus diz “Eu crio o mal” (Isaías 45.7), precisamos entender bem o que isso significa. O que aqui está em jogo é de enorme importância na narrativa bíblica, por ter enorme importância no mundo que Deus criou e do qual essa narrativa fala.
Como imagem de Deus, o ser humano é criado com o mesmo conjunto de energia que aqui estamos chamando de “o bem e mal”, e que representa uma grande riqueza e bênção em nossa constituição como seres. Aprender a concentrar e canalizar essa energia no sentido de shalôm, “paz”, no sentido de manter e desenvolver uma integridade pessoal e harmonizá-la com a integridade da criação inteira, para isso Deus colocou os humanos no paraíso. Essa capacidade tem um limite claro, sem limites nem haveria capacidade. O limite é a determinação divina.
O entendimento desse limite seria um dos grandes desafios intelectuais dos humanos criados por Deus. Do nosso lado, esse limite é “não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal”. O conhecimento verdadeiro do “bem e mal” não vem por comer desse fruto, mas exatamente por mantê-lo como nosso limite e tirar as consequências disso. Comer dele seria infringir o limite. Resultaria em separar o mal do bem, e ingerir esse mal separado do bem. Começando um processo de separação do “bem e mal” dentro de nós, um processo que não temos capacidade de controlar e que vai acabar nos controlando. Resultaria em morte. Nessas condições, Deus se obriga a nos manter longe da árvore da vida, que nos daria o poder de perpetuar essa condição de morte.
Longe do paraíso, começamos uma longa epopéia, aprender a “rejeitar o mal, e escolher o bem” (Isaías 7.15). “Rejeitar” o mal aqui não significa o mesmo que “eliminar” o mal. Temos sérias advertências sobre isso na Bíblia. Quando Deus percebe, depois do dilúvio, que “as pulsões do coração dos humanos são más desde a infância” (Gênesis 8.21), Ele decide, apesar disso, não mais destruir Sua criação por causa dele. Se decide por um caminho pedagógico, em que Ele vai nos acompanhar e guiar. Aí Ele decide escolher uma família da terra… e o resto é a história que a Bíblia nos conta.
Não somos chamados a eliminar o mal desse mundo, mas a rejeitá-lo como escolha e compromisso pessoal. Jesus contou uma história de um agricultor que semeou “boa” semente, mas um “inimigo” semeou inço ao redor dela. Quando perguntado se devia mandar arrancar o inço, o agricultor disse que não, o risco seria arrancar junto a boa semente. Na colheita os dois seriam separados (Mateus 13.24-30). Paulo compara essa colheita com um dia em que tudo que os humanos fazem passará por um fogo que revelará sua essência, e que queimará o mal que produzimos. Mas que não nos destruirá como pessoas (1 Coríntios 3.12-15).
O “bem” que somos chamados pela Bíblia a buscar, deve ser sempre visto no espelho do “bem” em Deus e na Sua criação. Um “bem” que é amplo e inclusivo, fonte de paz. O que Deus cria como “o mal”, tem a ver com esse “bem” e é parte dele, mesmo que tenhamos dificuldade em compreender isso. Na criação divina há um lugar para ambos, juntos. Isso de modo algum significa que a criação deixa de ser “muito boa”. Pelo contrário.
“Que variedade, Senhor, nas Tuas obras! Com que sabedoria fizeste todas elas!” (Salmos 104.24).
Dia 98 – Ano 2