Ouçam-me, terras do mar! Prestem atenção, povos distantes! Quem está falando aqui? Por ingênua que possa parecer a pergunta, as distintas respostas que tem sido dadas tem sido motivo de divisões, de amargas discussões, de anátemas, de mútuas exclusões. O contexto deixa claro que aqui fala alguém que é chamado de “o Servo”, “o meu Servo”.
Entre os cristãos, quando se lê esses textos dessa parte do Livro de Isaías, se pensa logo em Jesus. Jesus, o Servo de Deus, o Messias. Entre os israelitas, ou se pensa no povo de Israel como um coletivo, ou em algum indivíduo carismático que carrega em si o destino do povo. Quem tem razão?
A impressão é que os textos estão se referindo a vivências que podemos chamar de “espirituais”, no sentido amplo da palavra. A constante oscilação nesses textos, entre falas que parecem se referir a indivíduos, e falas que parecem se referir a coletividades, talvez não seja um acidente. Talvez para a experiência de mundo refletida nesses textos, existam coletividades que integram muitos indivíduos. E que se pensa nelas como realmente existentes, não como metáforas de um tipo ou outro.
Nós, de dentro da experiência de mundo que nos foi legada, na qual crescemos, e conforme a qual pensamos e vemos tudo que pensamos e vemos, temos uma enorme dificuldade em pensar em seres reais que não sejam indivíduos como estruturas físicas e químicas concretas, que chamamos de corpos ou de unidades psicossomáticas, pessoas, enfim. Separadas umas das outras, e constituindo o que para nós são unidades últimas e irredutíveis de existência e realidade. Simplesmente não conseguimos pensar fora dessas caixinhas, fora dessas casinhas.
Mas, e se os textos bíblicos supõem uma experiência de mundo com características distintas da nossa? Para exemplificar isso no Livro de Isaías, que estamos lendo. Quantas vezes os textos falam de “Israel” ou de “Jerusalém” de um jeito que dá a entender que se pensa em uma coletividade, um grupo? Que é o povo daquele momento histórico concreto, sem dúvida, mas que parece ser mais do que isso. Parece, às vezes, que os textos falam de grupos “espirituais” com suficiente realidade para que lhes seja dirigida a palavra, ou para que eles próprios tomem a palavra.
“Filha de Sião”, “Filha de Babel”, por exemplo. A que, ou a quem, se referem esses textos? Ou, voltando ao ponto de partida dessa reflexão, “o Servo”, “o meu Servo”, “o Servo de Deus”. De que, ou de quem, os textos estão falando? Ou, como aqui, quem está falando?
Dia 106 – Ano 2