Eventualmente surge alguém com a cara azeda me dizendo que aquele livro (Igreja entre aspas) que escrevi é contra a igreja. O sujeito resmunga um pouco, fala sobre tradição, fala que não é possível viver qualquer coisa comunitária que não se torne uma instituição. E sai ofendido com qualquer resposta que eu tente formular.
Acho engraçado, porque o livro não é contra igreja nenhuma, nem as entre aspas. A intenção do texto nunca foi lutar contra as igrejas até que todas fechem suas portas. Nunca foi uma cruzada contra coisa alguma. A única coisa que se propõe ali é que tiremos a venda dos olhos, demos nomes aos bois e paremos de nos iludir mutuamente dentro de qualquer que seja o modelo de igreja que se ofereça. É um convite à desilusão.
“Conhecereis a verdade e ela vos liertará” é uma forma diversa de dizer: pare de se iludir e encare a vida como ela é. Será mais fácil seguir os passos de Jesus se tudo for colocado às claras.
Tendo sido esclarecido de uma vez por todas que igreja é a partir de dois ou três, que não exige hierarquia nenhuma, nem lugar, nem data, nem liturgia; que é guiada pelo vento, que é livre e selvagem; que está debaixo tão somente do espírito de Cristo e nunca, jamais, em hipótese alguma, submissa à algum líder, alguém que a cubra espiritualmente, ou que lhe valide, ou que lhe dite as regras, ou que lhe represente; que não exige ministérios formais, nem líderes de ministérios, nem reuniões dominicais; que não depende de clero, nem de pastores formados e ordenados em cerimônia formal com imposição das mãos de outros pastores formados e ordenados; que não impõe sobre ninguém o recolhimento de dízimos para si, nem de ofertas, nem de primícias ou o que quer que seja, mas que simplesmente incentiva a generosidade e a partilha fundamentada unicamente no amor; que igreja nenhuma tem autoridade sobre a vida de niguém, muito menos o poder de excluir alguém da comunhão com Cristo, da ceia, ou do céu, etcétera, etcétera, etcétera.
Tendo tudo isso ficado claro e evidente (e o novo testamento deixa isso claro e evidente) não haverá enfim impedimento algum para que as instituições se formem com suas hierarquias, cargos, normas, estatutos e liturgias. E cada um poderá optar em filiar-se à essa ou aquela instituição ciente de que terá de se submeter a algumas regras impostas pelos regimentos internos. E saberá sempre e sem sombra de dúvida que essas normas são circunstanciais, e que a igreja de Jesus não tem nada a ver com nenhuma delas, ainda que naquela hora, lugar e circunstância, elas façam bem àqueles que ali se reúnem. Sim, sempre que dois ou três se reúnem haverá de se instituir algo entre eles. Tudo bem. Desde que isso jamais predomine sobre a essência, que é o amor e a liberdade. Assim se saberá que em tudo isso, no horários estabelecidos e nas normas e ritos habituais, poderá sempre haver encontros humanos na presença de Cristo e, portanto, poderá haver igreja reunida. Tanto quanto em bares, quartos, praças, salas, becos escuros e sujos, quintais, montanhas, escritórios e bocas de fumo.
O espírito de Cristo é livre e absolutamente desprovido de preconceitos. É o espírito do amor, do perdão, da reconciliação, do abraço, do bem, do serviço humilde em favor do outro. E por onde esse espírito passe, onde sopre, onde pouse, se houverem dois ou três, seja lá quais forem as roupas que usem, seus pecados egressos ou futuros, suas neuroses, seus vícios, suas liturgias, seus estatutos e atas, ou sua profissão de fé, ali haverá igreja.
Originalmente publicado em: http://atrilha.blogspot.com.br/2013/06/um-convite-desilusao.html
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